Um dia, o descomeço. O avesso. Um descabimento em si mesmo. Ficamos estranhos e não nos reconhecemos mais. Tristeza. Uma dor que atravessa o peito e encosta nas estrelas. Quem nunca sofreu por amor? Ou seria por desamor? De repente as noites ficam frias. Uma solidão igual a rodoviária vazia na madrugada, café gelado, meia furada. Um descontentamento invade a casa e arrasta a luz para fora. Escuro.
Amar e amar e um dia a realidade. É preciso muito saber de si para não fazer do amor uma trincheira. Cada um de um lado guerreando dentro de casa. Prisioneiros de uma cadeia sem grades. Parte de nós, às vezes, vira um quebra-cabeças e exige que o outro não deixe as peças soltas. Demora descobrir que ninguém nos pertence. Ninguém tem que nos completar. Ninguém tem que saber o que sinto se não falo. Ninguém tem que adivinhar nada de nós.
Somos metades, para sempre e agora, juntas. Uma desmedida, é verdade. Não existe alma gêmea. Cada parte é única. Talvez por isso, o desafio. Amar não é encaixar-se, é viver no estranhar-se a si mesmo. Cada um com suas cascas, suas claras e no diferente, o encontro.
A vida é pedra, boleto, insônia. Amor é a coragem de se mostrar por inteiro. É entrega sem reserva. E os dias são de rasuras, ranhuras, improvisos. Todos temos nossas cicatrizes, varizes, rugas. Amor é amar o real. Não somos perfeitos. Envelhecemos, murchamos, cansamos, descobrimos que há dores que jamais terão cura. Amor é abraço em meio ao descampado do dia a dia. É beijo pronto. É sorriso que dá sentido.
Queremos tanto um amor mas não sabemos nada dele. Estrangulamos o outro com nossas imposições, demandas, expectativas. E até a palavra gasta a sintaxe. Deixa de ser poesia. Não fomos ensinados a amar de modo tranquilo. Repetimos o que aprendemos antes. Somos meio elefantes de circo, domesticados pelo trauma, esperamos o estalido do chicote.
Amar é mastigar pedras e fazer delas poesia, todos os dias, pelo tempo que durar. É deixar de querer colocar rédeas no outro. Não, não é fácil. Amar dá trabalho. Mas jamais será uma roupa que não se veste mais ou uma feira de felicidades. Amar é uma viagem só de ida, que joga luz no presente e nos chama para a vida agora.
Na porta do descomeço, o começo outra vez. Perdoar-se é o mais importante. É preciso desarmar a bomba que somos. E é preciso ser rápido, pois a vida é curta demais para que fiquemos insistindo em fazer valer a dor da criança que fomos. Para amar é preciso aprender a ser gente grande com a certeza de que um dia a morte irá nos superar.